Cátia acordou mais uma vez de mal humor. Seus primeiros pensamentos rodaram em torno de suas responsabilidades. Faziam apenas dois dias que após uma briga, seu noivo terminara com ela, deixando seu coração dilacerado, ao descobrir que o mesmo a traia com sua tia.
Era manhã escura, com espessa nuvens carregadas de chuva.
Após seu banho, e vestir sua farda em tons de roxo e verde, se dirigiu a cozinha, para esquentar o mingau de sua mãe, que teve um derrame, e por recomendação médica, só poderia se alimentar de coisas em estado pastoso. Seu pai morrera de overdose havia três meses, mas a ausência dele só confirmou a falta que fizera nos seus vinte e três anos de vida. A filha que ele fizera fora do casamento, enquanto viajava para Minas Gerais, estava agora sob o cuidado de Cátia, e de sua mãe incapacitada, e com apenas quatorze anos, demonstra sinais de uma gravidez no terceiro mês, e como sempre, tinha acabado de chegar em casa.
Cátia encarava essa rotina com uma forçada apatia. Tentava fantasiar as rachaduras do barco de sua vida, para que tudo não afundasse, ou simplesmente pulasse no mar.
A expressão de dona Marta, mãe de Cátia, era imutável, mas de certa forma demonstrava um certo rancor, uma mágoa incutida, que a filha esforçada tomava como culpa, e que naquela manhã tal feição foi como uma faca quente perfurando seu mamilo esquerdo com extrema crueldade. Saiu de casa atrasada e sem fazer seu desjejum, já que teve de lavar os pratos, sujos pelo irmão, de dezenove anos que era auxiliar de manutenção de esgotos, e que provavelmente tinha trazido mais uma garota de programa para casa.
A camisa de sua farda estava amarrotada e com o cheiro impregnado da fumaça dos cigarros de maconha que o garoto consumia. Dado a escuridão apresentada logo de manhã, Cátia optou por vestir sua jaqueta, especial para dias extremamente frios, para impedir que a sua farda, essencial para entrada no trabalho, fosse molhada pela chuva. Saiu atrasada, como sempre, era de fato, apenas mais um dia.
A rota dos ônibus de sua cidade, é uma das mais confusas do nosso país. Para chegar ao trabalho, Cátia precisa caminhar cerca de duzentos e trinta metros para pegar o ônibus coletivo que a deixe mais próxima do seu destino, mesmo havendo um ponto de ônibus ao lado de sua casa. No caminho, quase que de maneira sobrenatural, o sol espanta as nuvens esquentando calçada e asfalto. O transtorno desse "clima temperamental" a incitou a retirar a pesada vestimenta para frio, já que o termômetro ataviou-se para marcação de 39,4º, um calor estubidamente absurdo para sua região. Ainda andando, conseguiu fazer manobras dignas de contorcionismo artístico, retirando o capote, mantendo os fones de ouvido e a bolsa da mão esquerda imutáveis.
Nas proximidades do ponto de espera, percebeu que o seu transporte passava, numa dessas curvas fechadas em extrema velocidade, para sua sorte ( e incrementação irônica dessa história), foi banhada pela grande onda formada pelo atrito dos grandes pneus do ônibus e pela poça acumulada no chão, o que a fez agora, perder um pouco do cheiro de maconha da roupa, com a leve consequência de tê-la completamente molhada e suja de lama.
Incrível como os neurônios produzem sinapses infinitamente multiplicadas em situações de adrenalina e estresse. Os de Cátia proporcionaram mais uma incrível apresentação de flexibilidade e agilidade, retirando novamente a jaqueta de dentro da bolsa de enorme tamanho e vestindo-a, enquanto subia os primeiros degraus de acesso ao transporte coletivo.
Enfim um momento de calmaria, sentada, Cátia olhou pro mesmo cenário de todos os dias pela janela, respirou e ouviu indignada a sua previsão astrológica pelo seu rádio FM. Seu momento de "paz" (ao todo cinco minutos), teve fim quando cedeu o lugar para uma gestante, já que tinha ocupado um lugar reservado para esse fim. Agora, estava Cátia no meio da multidão de braços levantados, que fazia movimentos de-sincronizados a cada redução de velocidade. Não demorou muito até que tivesse a primeira tontura. O calor era como misturas apodrecidas de comida, fazendo-a enjoar...
Finalmente chegara ao seu destino, o seu primeiro passo foi vitorioso, sentindo a brisa abafada da rua, os demais, no entanto, foram trágicos. Chegou no estabelecimento e imediatamente assumiu o seu lugar no caixa doze, a fila já era de grande volume. Dada a pressa esqueceu-se de registrar sua chegada, o que agravou a a repreensão dada pelo gerente, que a criticava pelas condições da roupa. Cátia iniciou sua jornada de trabalho, em mais um dia de sua vida miserável, sairia dali as vinte horas, chegara as nove, e tinham passado apenas trinta e cinco minutos desse tempo.
"- Próximo!"
A frase repugnante que Cátia continuamente falava, foi repetida mais uma vez. Olhou rapidamente seu relógio, marcava catorze horas e dezessete minutos. Enlouquecedor calor. Náusea.
O cliente chegou. Mais um desses mal educados; Homens brutos moldado por uma péssima educação.
O suor desceu por sua sobrancelha. Uma formiga mordeu sua perna. Sua corrente folheada a ouro irritou o pescoço e numa busca por rápido alívio passou as unhas rapidamente em movimentos frenéticos. A corrente partiu-se e caiu para debaixo de sua cadeira. O pouco de pó compacto em seu rosto causou uma horrível sensação devido a "quentura" do ambiente. Abaixou-se para recuperar a jóia e ao levantar-se bateu violentamente a cabeça na bancada e foi imediatamente criticada pelo ignorante cliente que a sua frente estava. Metade da fila reclamou e uma das crianças que acompanhava sua mãe, ria de maneira ingênua e perversa. Uma nova gota de suor pelo rosto. Frequência cardíaca aumentada e a traquéia enrijecida.
A retrospectiva do seu dia, semana, ano e vida passou como num segundo.
Incrível como os neurônios produzem sinapses infinitamente multiplicadas em situações de adrenalina e estresse.
Foi como em slow motion, a marreta já "passada" na compra do cliente, foi pego por Cátia e num surto de ira, foi arremessada contra o monitor junto com seu Grito ensurdecedor, novamente pega e dessa vez, de cima para baixo, atingindo a caixa registradora, que abriu-se e atirou as moedas para todos os lados, sendo que uma delas, acerta um dos olhos da criança, que até o momento ria. Dada a força e velocidade (Fr= m.a) do projétil, a retina é deslocada e a moeda presa na região ocular, espirrando um fino esguicho de sangue pelo corredor. Em sequência ao inferno formado, a marreta trava-se no crânio do cliente, que era atendido. Numa série de gritos a pobre moça de vida ruim, sai pela rua, perseguida pelos seguranças. E então acordou dessa louca idéia.
Olhou para o bronco cliente, sorriu de leve, registrou a compra, entregou-lhe a nota fiscal, e antes que dissesse "Próx..." foi chamada pelo gerente.
Na sala, ar-condicionado ligado, a falsidade e sarcasmo do seu superior fez uma nova gota de suor descer. Ela não deveria usar aquele pó compacto. Cabe dizer também que seu gerente é agora seu Ex-Noivo.
Um suspiro, uma leve tosse e mais um punhal acrescentado no seu peito: Demissão!
Incrível como os neurônios produzem sinapses infinitamente multiplicadas em situações de adrenalina e estresse.
Pensou na marreta. Procurou-a e não a achou. As canetas estavam distantes, engoliu a indignação e saiu da sala.
Como fazia calor naquele dia.
...tanta angústia no peito...
Por que não morria.
Mais uma tontura, e só.
Saiu dali. Não retirou apenas a jaqueta, mas também a blusa, andando pelas ruas semi nua. Ao fundo, um grito afirmativo chamando-a de louca. Em sua mente a imagem de sua mãe. Seu rosto profundamente marcado por mágoa e rancor.
Posicionou-se na sacada da recém construída João Durval, e sem olhar para trás, atirou-se.
Incrível como os neurônios produzem sinapses infinitamente multiplicadas em situações de adrenalina e estresse.
No meio dos segundos que demorou para que chegasse ao chão, ouviu de longe, muito longe, o "Meu Deus!" do motorista que passava em seu Uno Mile branco e a viu cair.
Enfim, morreu!
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Incrível como os neurônios produzem sinapses infinitamente multiplicadas em situações de adrenalina e estresse. Agora diga-me, é você que controla suas emoções, ou elas controlam você?