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A noite havia sido quente, mas não explicava a quantidade absurda de suor. Passei a mão pela cabeça e senti a pontada na cabeça que me fez ter um arrepio na coluna. Na minha cabeça, os nós eram embaraçados e adicionados a cada momento em que perguntava-me ser verdade ou mentira. Um sonho!?
Fui ligeiramente ao banheiro, não tranquei a porta, o medo fala tão alto que tais detalhes são irrelevantes. O banho foi mais demorado que o de comum. Normalmente uso esse espaço de tempo para pensar, e as vezes, elaborar sermões. As gotas continuas de água trouxeram-me mais do que dor de cabeça, mas um enorme susto, ao do nada, a resistência do chuveiro explodir, descarregando eletricidade pela corrente liquida. Por sorte, ou por qualquer outra coisa, saí a tempo de evitar contato com o possível choque.
Me olhei no espelho, a vista em um degradê maléfico, escurecendo-se fez surgir um novo arrepio, que imediatamente trouxe consigo as lembranças da carnificina infernal gerada na minha igreja. Era domingo, já marcava nove horas e treze minutos no relógio da estante. Levaria sete minutos até a igreja. Precisava saber. Precisava saber.
A camisa não tão bem composta foi posta pelo avesso e Bíblia não foi levada, mas uma pequena faca de prata, própria para legumes. A pus no bolso, sem analisar realidades ou idealizações, não deixaria cena parecida acontecer.
Foram cinco minutos até a igreja, corri como minha mente, sem pensar nos obstáculos ou motoristas bêbados. O centro da cidade estava coberta por uma densa névoa que sufocava-me um pouco. Estranhei o fato de tanta fumaça concentrada ainda naquele horário.
Na portaria da igreja, uma cena anormal, não havia ninguém, nem mesmo uma criança brincando no corrimão da escada, todavia, o som do louvor era estrondoso. O culto já havia começado, e provavelmente todos estavam partilhando da adoração a Deus.
Aproveitei a solidão para vestir a camisa corretamente. A faca, que estava no meu bolso, caiu e a peguei com a mão direita, escondendo-a com o pulso.
No segundo lance de escadas, uma das levitas chorava intensamente com a testa na parede. Chorava como se tivesse perdido a filha. Meu Deus! oO! Poderia ter acontecido... poderia ser o velório dos mortos, ou um sacrifício, como o holocausto. Santo Cristo!
O desespero antecipado tomou conta de mim, a fumaça estava intensa lá dentro, como se o foco fosse o templo, então dei o primeiro passo para o santuário, preparado para qualquer reação de violência, e simplesmente caí. Não de costas, não de frente, mas de joelhos, com se alguém muito pesado forçasse meus ombros para baixo. Não queria estar ajoelhado. Tentei me erguer, mas foi inútil. Por fim, atentei para a música que ia ser cantada: Poderoso Deus.
"Ao que está assentado, no trono, e ao cordeiro seja o louvor, seja a honra e a glória..."
Gradativamente a névoa foi se desfazendo. Um senhor estava do meu lado, também ajoelhado. Nunca o tinha visto na igreja, nem o conhecia de algum lugar. Perguntei, o que estava acontecendo. Com um sorriso enrugado no rosto respondeu:
" - Veja você mesmo!"
E eis que vi, homens também ajoelhados em frente ao púlpito, todos cantando "Poderoso Deus", numa adoração comovente e intensa. O senhor que do meu lado estava levantou-se vagarosamente, pegou a minha mão e disse:
-"Vai começar a cerimônia. Foi um prazer, meu nome Locke, mas pode me chamar de John, sou o vigésimo segundo" - caminhou para junto do grupo de senhores que choravam sobre o altar, e também prostrou-se.
A contemplação da cena durou pouco tempo, pois comecei a me perguntar sobre a classificação dada ao tal do John. Vigésimo segundo!? John - Locke... John Locke!! Sim.. o inglês. Havia conversado com Locke o filósofo! Foi quando me atrevi a contar quantos haviam sobre o altar. Vinte e quatro ao todo. Todos senhores. Não os reconhecia, apesar de alguns rostos já terem sido visto por mim alguma vez, em algum lugar.
Eram vinte e quatro anciãos, prostrados, cantando.
E vi, no meio deles, Nietzsche, com o rosto no chão e mãos estiradas. Schleiermarcher estava lá também. Hegel; Sartre; Rousseau; Aristóteles... todos prostrados... e agora lançavam cada um, um livro sobe o altar. O mais velho lançou um pote com um liquido dentro; e diziam todos: "Tu é digno, Senhor e Deus nosso de receber a glória a honra e o poder, porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas."
Eu perdi a noção do tempo. As coisas estavam confusas, mas sabia que o que estava vendo era a cena de Apocalipse 4.
...
Fez-se silêncio e pelo tempo que fiquei com meu rosto no chão, não sei se dormi.
Do meu lado apareceu Nietzsche; abaixou-se, olhou para mim, pegou a faca, testou a lâmina passando de leve o dedo polegar, sorriu e disse:
-"Levarei de presente. Adeus caro amigo!"
E antes que conclui-se o pensamento de reação, uma nova batida na cebeça, uma nova tontura... e tudo escureceu.
Acordei num salto, estava no meu quarto, um sonho? olhei para o relógio, 8:45 da manhã, era uma terça-feira, estava suado, mãos trêmulas... o telefone tocou. A respiração se estendeu-se quando ouvi a voz da secretária, solicitando minha presença na igreja. As coisas em casa estavam perfeitamente arrumadas. No sofá, sentei e tentei por a cabeça no lugar. O que tinha eu comido na tarde passada? Lembrei, que na geladeira deveria ter uma dica. Abri-a e lá estavam as vasilhas com as sobras do almoço passado. Ufa! Tinha sido um sonho. Um duplo.. ou triplo... sei lá... mas havia sido um sonho. No banheiro constatei que o chuveiro estava funcionando perfeitamente bem.
Enfim, lembrei que tinha me confrontado nas pesquisas sobre as obras de Nietzsche, especialmente "Assim Falava Zaratustra".
Após o banho, fui a igreja e recebi as orientações necessárias. Pediram-me para ajudar o tesoureiro numa projeção financeira e na contagem das ofertas do último domingo.
Direcionei-me À tesouraria, e após a identificação e toda a conversa introdutória, acompanhada de risadas e piadas, sentei enquanto o irmão tesoureiro buscava o material de contagem.
Sem muita importância ou ênfase, irmão Caio, tesoureiro da nossa igreja a pouco tempo, colocou sobre a mesa um envelope branco, de uns trinta centímetros aproximadamente, e disse-me que tinha sido colocado no gazofilácio e estava direcionado para mim.
Estranho.., mas a animação bateu, quando deduzi que poderia ser uma oferta especifica para manutenção da minha vida seminarial. Abri e retirei do envelope uma enorme quantidade de folhas, algumas soltas e outras ainda presa por um clip de papel.
Não era dinheiro, disso soube logo que toquei as folhas.
Numa delas, em fonte tamanho 18, aparentando ser datilografado:
--- GENEALOGIA DA MORAL ---
E escrito a mão um recado na borda:
"Ao meu amigo de Café e Prosa... ass.: Friedrich W. Nietzsche".
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... e fim ... eu acho...